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segunda-feira, 2 de abril de 2012

Especial Semana Santa: O Rei Sacerdote que Nunca Reinou

A maioria das pessoas hoje fala de cristandade como se se tratasse de uma coisa específica, uma entidade coerente, homogênea e unificada. É desnecessário dizer que cristandade não é nada disto. Como todos sabem, existem numerosas formas de cristandade, como o catolicismo romano e a igreja anglicana, iniciada por Henrique VIII. Existem múltiplas congregações evangélicas, como os adventistas do sétimo dia e as testemunhas de Jeová. E existem diversas seitas e cultos, como os filhos de Deus e a Igreja da Unificação do reverendo Moon. Assim, fica difícil determinar o que exatamente constitui a cristandade.

Se é que existe um único fator que nos permita falar de cristandade, um fator que ligue as diversas e divergentes crenças, este é o Novo Testamento, e mais particularmente a condição singular atribuída no Novo Testamento a Jesus, sua crucificação e ressurreição. Mesmo os que não subscrevem a verdade literal ou histórica desses eventos, se aceitam sua importância simbólica, são considerados cristãos.

Assim, se existe uma unidade no difuso fenômeno chamado cristandade, ela reside no Novo Testamento, e, mais especificamente, nas narrativas sobre Jesus conhecidas como os quatro Evangelhos. Estas narrativas são popularmente consideradas as de maior autoridade já registradas; muitos cristãos as consideram coerentes e incontestáveis. Os quatro evangelistas, supostos autores dos Evangelhos, são tidos como testemunhas inexpugnáveis que se reforçam e confirmam entre si. Entre as pessoas que hoje se denominam cristãs, relativamente poucas sabem que os quatro Evangelhos não somente se contradizem como, às vezes, discordam violentamente entre si.

No que diz respeito à tradição popular, a origem e o nascimento de Jesus são bem conhecidos. Mas os Evangelhos, nos quais essa tradição é baseada, são consideravelmente mais vagos sobre esse assunto. Somente dois dos Evangelhos, Mateus e Lucas, dizem alguma coisa sobre a origem e o nascimento de Jesus e se contestam flagrantemente. De acordo com Mateus, por exemplo, Jesus era um aristocrata, se não um rei legítimo e de direito, descendente de Davi, via Salomão. De acordo com Lucas, a família de Jesus, embora descendente da casa de Davi, era de uma classe menos elevada. Com base na narrativa de Marcos, por outro lado, surgiu a lenda do "pobre carpinteiro". São genealogias tão discordantes que podem inclusive estar se referindo a duas pessoas bem diferentes. As discrepâncias entre os Evangelhos não se esgotam na questão da genealogia de Jesus. De acordo com Lucas, Jesus, recém-nascido, foi visitado por pastores, de acordo com Mateus, foi visitado por reis. De acordo com Lucas, a família de Jesus vivia em Nazaré. A partir daí se diz que eles teriam viajado (para um censo que a história sugere nunca ter ocorrido)  a Belém, onde Jesus nasceu numa pobre manjedoura. Mas, de acordo com Mateus, a família de Jesus havia sido abastada e residira em Belém todo o tempo, Jesus havia nascido em uma casa. Nessa versão, a perseguição de Herodes aos inocentes impele a família a partir para o Egito, e só depois de seu retorno eles vivem em Nazaré.


Em cada uma dessas narrativas as informações são bastante específicas. Assumindo que o censo tenha de fato ocorrido, elas são perfeitamente plausíveis, embora discordantes. Esta contradição não pode ser racionalizada. Não há como as duas narrativas conflitantes serem corretas, e não há como reconciliá-las. Queiramos admiti-lo ou não, deve ser reconhecido o fato de que um dos Evangelhos está errado, ou ambos estão. Em face de tão inevitável conclusão, os Evangelhos não podem ser considerados incontestáveis. Como podem sê-lo se se impugnam um ao outro?

Quanto mais se estudam os Evangelhos, mais claras se tornam as contradições entre eles. Não concordam entre si nem mesmo quanto à data da crucificação. De acordo com o Evangelho de João, ela ocorreu no dia anterior ao da celebração da libertação dos escravos judeus no Egito. De acordo com os Evangelhos de Marcos, Lucas e Mateus, ocorreu um dia depois. Tampouco os Evangelhos estão de acordo em relação à personalidade e ao caráter de Jesus: um salvador humilde como um cordeiro (Lucas), um poderoso e majestoso soberano, que veio "trazer a espada e não a paz" (Mateus). Existe outra discordância sobre as últimas palavras de Jesus na cruz. Em Mateus e em Marcos estas palavras foram: "Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonastes?" Em Lucas, foram: "Pai, perdoai-os, pois eles não sabem o que fazem." Em João, simplesmente: "Está terminado.”
Dadas tais discrepâncias, os Evangelhos só podem ser considerados uma autoridade altamente questionável e certamente não definitiva. A Bíblia, deve ser lembrado e isto se aplica ao Velho e ao Novo Testamento, é uma seleção de trabalhos e em muitos aspectos, uma seleção arbitrária. Na realidade, ela poderia bem conter muito mais livros e escritos do que de fato contém. E não é uma questão de livros que tenham sido perdidos. Pelo contrário. Houve os deliberadamente excluídos.

Em 1958, por exemplo, o professor Morton Smith, da Universidade de Columbia, descobriu, em um monastério próximo a Jerusalém, uma carta que continha um fragmento inédito do Evangelho de Marcos. O fragmento não tinha sido perdido, mas aparentemente suprimido, sob a instigação, se não pedido expresso, do bispo Clemente de Alexandria, um dos mais venerados antigos padres da Igreja. Clemente, parece, tinha recebido uma carta de um certo Theodo­re, que reclamava de uma seita gnóstica, os carpocracianos. Os carpocracianos pareciam estar interpretando algumas passagens do Evangelho de Marcos segundo seus próprios princípios, que não estavam de acordo com a posição de Clemente e de Theodore. Como conseqüência, Theodore aparentemente os atacou e registrou sua ação junto a Clemente. Na carta encontrada pelo professor Smith, Clemente responde a seu discípulo da seguinte forma:

Você fez bem em silenciar os indescritíveis ensinamentos dos carpocra­cianos. Pois estes são as "estrelas errantes" da profecia, que se desviam da estrada estreita dos mandamentos para um abismo sem fronteiras de pecados carnais. Pois, orgulhando-se de seu conhecimento, como eles dizem, "das profundas [coisas] de Satã", eles não sabem que estão se jogando no "baixo mundo da escuridão" da falsidade, e, vangloriando-se de serem livres, eles se tornaram escravos de desejos servis. Tais [homens] devem ser combatidos de todas as maneiras e completamente. Pois, mesmo que eles digam alguma verdade, quem ama a verdade não deve, mesmo assim, concordar com eles. Pois nem todas as verdadeiras [coisas] são a verdade, nem deveria aquela verdade que [meramente] parece verdadeira segundo opiniões humanas ser preferida à verdade absoluta, aquela da fé.

Trata-se de uma afirmação extraordinária para um padre. De fato, Clemente está dizendo nada menos que, "se seu oponente estiver dizendo a verdade, você deve negá-la e mentir para refutá-lo". Mas isto não é tudo. Na passagem que se segue, a carta de Clemente continua discutindo o Evangelho de Marcos e seu "mau uso" pelos carpocra­cianos:

[Quanto a] Marcos, então, durante a estada de Pedro em Roma, ele escreveu [uma narrativa sobre] os feitos do Senhor, sem contudo declarar todos, nem ainda insinuar os secretos, mas selecionando aqueles que ele pensou mais úteis para aumentar a fé dos que estavam sendo instruídos. Mas quando Pedro morreu como um mártir, Marcos veio a Alexandria, trazendo suas notas e aquelas de Pedro, das quais ele transferiu para o seu livro anterior as coisas adequadas ao que quer que leve a progressos na direção do conhecimento [gnose]. [Então] ele compôs para uso um Evangelho mais espiritual que aqueles que estavam sendo aperfeiçoados. Entretanto, ele não divulgou as coisas que não deviam ser pronunciadas, nem escreveu os ensinamentos hierophanticos do Senhor, mas às histórias já escritas ele adicionou outras e, além disso, trouxe alguns dizeres dos quais ele sabia que a interpretação guiaria os ouvintes até os mais recônditos santuários da verdade oculta pelos sete [véus]. Então, em suma, ele pré-arranjou assuntos, nem de má vontade nem de forma incauta, em minha opinião, e, ao morrer, ele deixou sua composição na igreja de Alexandria, onde ela é ainda mais cautelosamente guardada, sendo lida somente por aqueles iniciados nos grandes mistérios.
Mas como os loucos demônios estão sempre planejando destruição para a raça humana, Carpocrates, instruído por eles e utilizando-se de artes malévolas, escravizou alguns presbíteros da igreja de Alexandria de tal modo que conseguiu uma cópia do Evangelho secreto, que ele interpretou segundo sua doutrina blasfema e carnal e, além disso, poluiu, misturando palavras límpidas e sagradas com vergonhosas mentiras.

Assim, Clemente reconheceu livremente que existe um autêntico evangelho secreto de Marcos. E instruiu Theodore a negá-lo:

Àqueles [os carpocracianos], desta forma, como eu disse antes, não se deve dar trégua jamais. Quando eles lançam suas falsificações, não devemos conceder que o Evangelho secreto é o de Marcos, mas devemos sempre negá-lo sob juramento. Pois "nem todas as verdadeiras [coisas] devem ser ditas a todos os homens".

O que era este "evangelho secreto" que Clemente ordenou a seu discípulo repudiar e que os carpocracianos estavam interpretando de forma má? Clemente responde a pergunta ao incluir a transcrição do texto, palavra por palavra, em sua carta:

Para você, eu não hesitarei em responder [às perguntas] que perguntou, refutando todas as falsificações pelas verdadeiras palavras do Evangelho. Por exemplo, depois de "E eles seguiram na estrada que ia para Jerusalém" e o que se segue, até "Depois de três dias ele subirá", [o Evangelho secreto] traz o seguinte [material] palavra por palavra:
"E eles chegam a Betânia, e uma mulher, cujo irmão havia morrido, estava lá. E, vindo, ela se prostrou ante Jesus e lhe disse: filho de Davi, tenha piedade de mim. Mas os discípulos a empurraram. E Jesus, ficando com raiva, foi com ela até o jardim onde estava a tumba e, imediatamente, um grande grito foi ouvido da tumba. Chegando perto, Jesus afastou a pedra da porta da tumba. E imediatamente, indo na direção de onde estava o jovem, ele estendeu sua mão e o levantou, segurando-o pela mão. Mas o jovem, olhando para ele, o amou e começou a implorar que pudesse segui-lo. E saindo da tumba eles foram para a casa do jovem, pois ele era rico. E depois de seis dias, Jesus lhe disse o que fazer e à noite o jovem foi ter com ele, usando uma roupa de linho sobre [seu corpo] nu. E ele permaneceu com ele aquela noite, pois Jesus ensinou-lhe o mistério do reino de Deus. E então, se levantando, ele retornou ao outro lado do Jordão."

Este episódio não aparece em nenhuma versão do Evangelho de Marcos. Entretanto, é bastante familiar em suas linhas gerais. Existe, é claro, a cura de Lázaro, descrita no quarto Evangelho, atribuído a João. Na versão citada, contudo, existem algumas variações significativas. Em primeiro lugar, existe um "grande grito" na tumba antes que Jesus afaste a rocha ou instrua seu ocupante a levantar-se. Isto sugere que o ocupante não estava morto, negando assim qualquer elemento miraculoso. Em segundo lugar, no episódio de Lázaro parece haver algo mais do que as narrativas aceitas nos levam a acreditar. Certamente, a passagem citada atesta alguma relação especial entre o homem na tumba e o homem que o "ressuscita". Alguns, talvez sejam tentados a ver uma insinuação de homossexualidade. É possível que os carpocracianos, uma seita que aspirava à transcendência dos sentidos por meio da saciedade, discernisse precisamente tal insinuação. Mas, como argumenta o professor Smith, é na realidade muito mais provável que todo o episódio se refira a uma iniciação, uma morte e renascimento rituais e simbólicos, de um tipo muito comum no Oriente Médio da época.

Em todo caso, o aspecto central é que o episódio, e a passagem citada acima, não aparece em nenhuma versão moderna ou aceita de Marcos. Realmente, as únicas referências a Lázaro, ou a um personagem chamado Lázaro, no Novo Testamento estão no Evangelho atribuído a João. Fica assim evidente que o conselho de Clemente foi aceito, não somente por Theodore, mas também por autoridades posteriores. O incidente com Lázaro foi completamente excluído do Evangelho de Marcos.

Se o Evangelho de Marcos foi tão dramaticamente expurgado, ele foi também carregado com adições espúrias. Em sua versão original ele termina com a crucificação, o enterro e a tumba vazia. Não existe a cena da ressurreição, ou a reunião com os discípulos. Algumas Bíblias modernas contêm um final mais convencional para o Evangelho de Marcos, incluindo a ressurreição. Mas praticamente todos os estudiosos da Bíblia concordam em que este final expandido é uma adição posterior, datada do final do século II e anexada ao documento original.

Dessa forma, não podemos aceitar os Evangelhos como uma autoridade definitiva e inexpugnável, mas tampouco podemos descartá-los. É certo que eles não foram totalmente fabricados e fornecem algumas das poucas pistas disponíveis sobre o que realmente ocorreu na Terra Santa dois mil anos atrás.

"Ressurreição" de Lázaro: Deliberadamente excluída do Evangelho de Marcos.

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