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segunda-feira, 9 de abril de 2012

Especial Semana Santa: O Discípulo Amado

Lázaro não aparece nominalmente nos Evangelhos de Lucas, Mateus e Marcos, embora sua ressurreição dos mortos esteja originalmente emitida na narrativa suprimida de Marcos. Como conseqüência, Lázaro é conhecido para a posteridade somente através do quarto Evangelho, o de João. Mas aqui é evidente que ele goza de algum tratamento preferencial, que não se limita ao fato de ter sido "trazido do mundo dos mortos". Neste e em vários outros aspectos, ele pareceria mais próximo de Jesus do que os próprios discípulos. Entretanto, curiosamente, os Evangelhos nem mesmo o enquadram entre os discípulos.

 Ao contrário dos discípulos, Lázaro é na realidade ameaçado. De acordo com o quarto Evangelho, o chefe dos sacerdotes, ao resolver despachar Jesus, decidiu matar Lázaro também (João 12:10). Este, de algum modo, teria sido ativo em nome de Jesus, o que é mais do que pode ser dito de alguns dos discípulos. Teoricamente, isto o teria qualificado a ser também um discípulo, mas ele não é citado como tal. Nem é dito que ele estava presente na crucificação, numa aparente demonstração de ingratidão de um homem que, literalmente, devia sua vida a Jesus. Ora, ele pode ter fugido por causa da ameaça dirigida contra ele. Mas é extremamente curioso que não haja nenhuma referência posterior a ele nos Evangelhos. Ele parece ter desaparecido completamente, nunca mais é mencionado. Ou é?

Depois de permanecer em Betânia por três meses, Jesus se retira com seus discípulos para as margens do Jordão, a menos de um dia de distância. Lá, um mensageiro o procura com a notícia de que Lázaro está enfermo. Mas o mensageiro não se refere a Lázaro pelo nome. Ele descreve (João 11:3) o homem doente como alguém de importância muito especial: "Senhor, está enfermo aquele que tu amas." A reação de Jesus é estranha. Ao invés de retornar imediatamente para socorrer o homem que supostamente ama, ele ignora o assunto (11:4): "E ouvindo isto Jesus disse-lhes: 'Esta enfermidade não se encaminha a morrer, mas a dar glória a Deus, para o filho de Deus ser glorificado por ela. '" Se estas palavras são surpreendentes, suas ações o são ainda mais (11:6): "Quando ouviu que ele estava doente, deixou-se então ficar ainda dois dias no mesmo lugar."

Em suma, Jesus ainda gasta dois dias no Jordão, apesar das alarmantes notícias que havia recebido. Final­mente, decide retornar a Betânia. E então contradiz flagrantemente sua afirmação anterior, ao dizer aos discípulos que Lázaro estava morto. Mas ainda se mostra impassível. Afirma simplesmente que a "morte" de Lázaro tinha servido a algum propósito e deve ser levada em conta (11:11): "Nosso amigo Lázaro dorme: mas eu vou despertá-lo do sono." E quatro versículos depois ele virtualmente admite que todo o assunto tinha sido uma encenação cuidadosa e previamente arranjada (11:15): "E eu por amor de vós folgo de não me ter achado lá, para que acrediteis. Mas vamos a ele." Se tal comportamento é chocante, a reação dos discípulos não o é menos (11:16): "Disse então Tomé, chamado Dídimo, aos outros discípulos: 'Vamos nós também, para morrermos com ele. '" O que significa isto? Se Lázaro está literalmente morto, certamente os discípulos não têm a intenção de juntar-se a ele num suicídio coletivo! E como se pode explicar a negligência do próprio Jesus, a fria indiferença com a qual ele ouve a notícia sobre a doença de Lázaro e retarda seu retorno a Betânia?

A explicação poderia residir, como sugere o professor Morton Smith, em uma iniciação mais ou menos padrão de uma "escola de mistério". Como demonstra o professor Smith, tais iniciações e seus rituais eram comuns na Palestina da época de Jesus. Eles envolviam freqüentemente uma morte e um renascimento simbólicos, que eram chamados assim, com estes nomes. O seqüestro em uma tumba, que se tornava o útero para o renascimento do aspirante; um ritual, agora chamado batismo, com uma imersão simbólica em água; e um copo de vinho, identificado com o sangue do profeta ou mago que presidia a cerimônia. Ao beber de tal copo, o discípulo consumava uma união simbólica com seu mestre, o primeiro tornando-se misticamente "um" com o segundo.

Como ressalta o professor Smith, a carreira de Jesus é muito similar à de outros magos, curadores e milagreiros da época. Ao longo dos quatro Evangelhos, por exemplo, ele se encontra secretamente com as pessoas que vai curar, ou fala com eles a sós. Depois, freqüentemente lhes pede para não divulgar o que foi mostrado ou falado. E, para o público em geral, ele se expressa habitualmente através de alegorias e parábolas.

Durante a estada de Jesus no Jordão, Lázaro teria começado um ritual típico de iniciação, que levaria, como tais rituais normalmente fazem, a uma ressurreição e um nascimento simbólicos. Nesta linha, o desejo dos discípulos de "morrer com ele" se torna perfeitamente compreensível, e o mesmo se dá com a complacência de Jesus em relação ao assunto, de outro modo inexplicável. Maria e Martha pareciam genuinamente desesperadas, assim como várias outras pessoas. Mas elas podem simplesmente ter entendido mal ou construído mal o objetivo do exercício. Ou talvez alguma coisa tivesse dado errado durante a iniciação, uma ocorrência comum. Ou talvez todo o assunto tenha sido uma peça de teatro engenhosamente preparada, cuja verdadeira natureza e objetivo fossem conhecidos por muito poucos.

Este incidente reflete um ritual de iniciação, e Lázaro está recebendo um tratamento muito especial. Entre outras coisas, está aparentemente sendo iniciado antes de qualquer dos discípulos, que parecem invejosos de seu privilégio. Mas por que deveria este homem desconhecido, de Betânia, ser destacado? Por que deveria ele submeter-se a uma experiência na qual os discípulos estavam ansiosos para acompanhá-lo? Por que, muito depois, deveriam "hereges" misticamente orientados, como os carpocracianos, dar tanta ênfase ao assunto? E por que deveria o episódio inteiro ser expurgado do Evangelho de Marcos? Talvez porque Lázaro fosse "aquele a quem Jesus amava" mais do que aos outros discípulos. Talvez porque Lázaro tenha tido uma conexão especial com Jesus, a de cunhado. Talvez por ambas as razões. É possível que Jesus tenha conhecido e amado Lázaro precisamente porque ele era seu cunhado. Em todo caso, o amor é repetidamente enfatizado. Quando Jesus retorna a Betânia e chora, ou pretende chorar, pela morte de Lázaro, os circundantes ecoam as palavras do mensageiro (João 11:36): "Vejam como ele o amava!”

O autor do Evangelho de João, o Evangelho que conta a história de Lázaro, não se identifica em nenhum momento como "João". Não se nomeia. Contudo ele refere-se a si mesmo com uma denominação singular. Constantemente se denomina "o discípulo amado", "aquele a quem Jesus amava", e insinua claramente que gozava de uma condição única e preferida, acima da de seus confrades. Na última ceia, por exemplo, ele mostra flagrantemente sua proximidade pessoal com Jesus, e só a ele Jesus confidencia os meios pelos quais a traição iria ocorrer (João 13:23-6):

Um dos seus discípulos, ao qual amava Jesus, estava recostado à mesa no seio de Jesus. A este pois fez Simão Pedro um sinal e disse-lhe: "De quem ele fala?" Aquele discípulo pois tendo-se reclinado sobre o peito de Jesus, perguntou-lhe: "Senhor, quem é esse?" Respondeu Jesus: "É aquele a quem eu der o pão molhado." E tendo molhado o pão, deu-o a Judas, filho de Simão Iscariotes.

Quem é este "discípulo amado", em cujo testemunho o quarto Evangelho se baseia? Todas as evidências sugerem que ele é de fato Lázaro, "ao qual amava Jesus". Parece então que Lázaro e o "discípulo amado" são a mesma pessoa, e que Lázaro é a verdadeira identidade de "João". Esta conclusão parece quase inevitável, e não fomos os únicos a chegar a ela. Segundo o professor William Brownlee, um estudioso bíblico importante e um dos mais reconhecidos especialistas nos Manuscritos do Mar Morto, "a partir de evidências internas no quarto Evangelho (...) a conclusão é que o discípulo amado é Lázaro de Betânia".

Se Lázaro é o "discípulo amado", seu misterioso desaparecimento da narrativa das Escrituras e sua aparente ausência durante a crucificação estão explicados. Pois se ambos são o mesmo, ele teria estado presente na crucificação. E Jesus teria confiado a ele o cuidado de sua mãe. As palavras com as quais ele o fez poderiam bem ser as de um homem referindo-se ao seu cunhado (João 19:26-27):

Jesus pois tendo visto sua mãe, e ao discípulo que ele amava, o qual estava presente, disse a sua mãe: "Mulher, eis aí teu filho." Depois disse ao discípulo: "Eis aí tua mãe." E desta hora em diante a tomou o discípulo para sua casa.

A última palavra desta citação é particularmente reveladora. Pois os outros discípulos tinham deixado seus lares na Galiléia e, para todos os efeitos, não tinham casa. Todavia, Lázaro tinha uma casa, aquela casa em Betânia, onde o próprio Jesus costumava ficar.
Depois de ser sentenciado à morte pelos sacerdotes, Lázaro não é mais mencionado nominalmente. Parece ter desaparecido. Mas se ele era de fato o "discípulo amado", não desapareceu. Neste caso, seus movimentos e atividades podem ser traçados até o final do quarto Evangelho. Aqui também existe um episódio curioso que merece exame. No final do quarto Evangelho, Jesus prevê a morte de Pedro e  instrui Pedro a "segui-lo" (João 21 :20-24):

Voltando Pedro, viu que o seguia aquele discípulo que Jesus amava, que ao tempo da ceia estivera até reclinado sobre o seu peito, e lhe perguntara: "Senhor, quem é o que te há de trair?" Assim que como Pedro viu a este, disse para Jesus: "Senhor, e este quê?" Disse-lhe Jesus: "Eu quero que ele fique assim até que eu venha; que tens tu com isso? Segue-me tu.” Correu logo esta voz entre os irmãos, que aquele discípulo não morreria. E não lhe disse Jesus: "Não morre", senão: "Eu quero que ele fique assim, até que eu venha; que tens tu com isso?" Este é aquele discípulo que dá testemunho destas coisas, e que as escreveu: e nós sabemos que é verdadeiro o seu testemunho.

Apesar desta fraseologia ambígua, a importância desta passagem parece clara. O "discípulo amado" foi explicitamente instruído a esperar pelo retorno de Jesus. E o texto em si é bastante enfático ao reafirmar que este retorno não é para ser entendido de forma simbólica, como uma "segunda vinda". Ao contrário, ele insinua algo mais mundano. Após despachar seus outros seguidores pelo mundo, Jesus deve retornar em breve com alguma tarefa especial para o "discípulo amado". É quase como se eles tivessem arranjos específicos e concretos para concluir, e planos para realizar.

Se o "discípulo amado" era Lázaro, tal cumplicidade, desconhecida pelos outros discípulos, pareceria ter um precedente. Na semana anterior à crucificação, Jesus faz sua entrada triunfal em Jerusalém. De acordo com as profecias do Velho Testamento sobre um Messias, ele deve estar montando um asno (Zacarias 9:9-10). Então, um asno deve ser encontrado. No Evangelho de Lucas, Jesus envia dois discípulos a Betânia, onde, diz ele, encontrarão um asno esperando por eles. Eles são instruídos a dizer ao dono do animal que o "Mestre necessita dele". Quando tudo ocorre exatamente como Jesus tinha previsto, isto é considerado uma espécie de milagre. Mas existiria aí algo de extraordinário ou se tratava de planos cuidadosamente elaborados? E não poderia o homem de Betânia, que fornece o asno, ser Lázaro?

Esta é certamente a conclusão do professor Hugh Schonfield. Ele argumenta convincentemente que os arranjos para a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém haviam sido confiados a Lázaro, e que os outros discípulos os desconheciam. Se este foi realmente o caso, isto implica a existência de um círculo interno de seguidores de Jesus, um núcleo de colaboradores, co-conspiradores ou familiares que, apenas eles, recebiam as confidências do mestre. O professor Schonfield acredita que Lázaro fazia parte de tal círculo. E sua crença reforça a insistência do professor Smith no tratamento preferencial que Lázaro recebia em virtude de sua iniciação, ou morte simbólica, em Betânia. É possível que Betânia tenha sido um centro de culto, um local reservado para os rituais singulares presididos por Jesus.

Em todo caso, a cumplicidade que parece produzir um asno do "homem de Betânia" pode bem estar se revelando novamente no misterioso final do quarto Evangelho, quando Jesus ordena que o "discípulo amado" espere o seu retorno. Pareceria que ele e o "discípulo amado" tinham planos a realizar. E não é absurdo assumir que estes planos incluíam cuidar da família de Jesus. Durante a crucificação, ele já tinha confiado sua mãe ao "discípulo amado". Se ele tivesse mulher e filhos, eles seriam também confiados ao "discípulo amado". Isto, certamente, seria mais plausível se o "discípulo amado" fosse de fato seu cunhado.

De acordo com a tradição posterior, a mãe de Jesus veio a morrer no exílio, em Éfeso, onde o quarto Evangelho teria surgido depois. Não há qualquer indicação, contudo, de que o "discípulo amado" tenha cuidado da mãe de Jesus durante todo o resto da sua vida. Segundo o professor Schonfield, o quarto Evangelho provavelmente não foi composto em Éfeso, mas somente retrabalhado, revisado e editado lá por um grego idoso, que trabalhou segundo suas próprias idéias.

Se o "discípulo amado" não foi para Éfeso, o que aconteceu com ele? Se ele e Lázaro são a mesma pessoa, esta pergunta pode ser respondida, pois a tradição é bastante explícita sobre o que aconteceu com Lázaro: Segundo a tradição, e segundo alguns escritores antigos da Igreja, Lázaro e Madalena, Martha, José de Arimatéia e alguns outros foram transportados por navio até Marselha. Lá, José teria sido consagrado por São Filipe e enviado à Inglaterra, onde estabeleceria a Igreja de Glastonbury. Lázaro e Madalena, contudo, teriam permanecido na Gália. A tradição afirma que Madalena morreu em Aix­-en-Provence ou em Saint Baume, e Lázaro em Marselha, após haver fundado lá o primeiro bispado. Um de seus companheiros, São Maxi­min, teria fundado o primeiro bispado de Narbonne.

Se Lázaro e o "discípulo amado" forem a mesma pessoa, haverá uma explicação para o desaparecimento conjunto de ambos. Lázaro, o verdadeiro "discípulo amado", parece ter sido levado a Marselha juntamente com sua irmã que, como afirma a tradição posterior, carregou com ela o cálice sagrado, o "sangue real". E os arranjos para sua fuga e exílio parecem ter sido feitos pelo próprio Jesus, juntamente com o "discípulo amado", no final do quarto Evangelho.

Se Jesus foi realmente casado com Madalena, poderia tal casamento ter servido a algum propósito? Em outras palavras, poderia ele ter significado algo mais que um casamento convencional? Poderia ter sido uma aliança dinástica de algum tipo, com repercussões e implicações políticas? Em suma, poderia uma estirpe resultante desse casamento ter garantido o nome "sangue real"?

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Lázaro: O Discípulo Amado e Cunhado de Jesus

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