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segunda-feira, 9 de abril de 2012

Especial Semana Santa: O Discípulo Amado

Lázaro não aparece nominalmente nos Evangelhos de Lucas, Mateus e Marcos, embora sua ressurreição dos mortos esteja originalmente emitida na narrativa suprimida de Marcos. Como conseqüência, Lázaro é conhecido para a posteridade somente através do quarto Evangelho, o de João. Mas aqui é evidente que ele goza de algum tratamento preferencial, que não se limita ao fato de ter sido "trazido do mundo dos mortos". Neste e em vários outros aspectos, ele pareceria mais próximo de Jesus do que os próprios discípulos. Entretanto, curiosamente, os Evangelhos nem mesmo o enquadram entre os discípulos.

 Ao contrário dos discípulos, Lázaro é na realidade ameaçado. De acordo com o quarto Evangelho, o chefe dos sacerdotes, ao resolver despachar Jesus, decidiu matar Lázaro também (João 12:10). Este, de algum modo, teria sido ativo em nome de Jesus, o que é mais do que pode ser dito de alguns dos discípulos. Teoricamente, isto o teria qualificado a ser também um discípulo, mas ele não é citado como tal. Nem é dito que ele estava presente na crucificação, numa aparente demonstração de ingratidão de um homem que, literalmente, devia sua vida a Jesus. Ora, ele pode ter fugido por causa da ameaça dirigida contra ele. Mas é extremamente curioso que não haja nenhuma referência posterior a ele nos Evangelhos. Ele parece ter desaparecido completamente, nunca mais é mencionado. Ou é?

Depois de permanecer em Betânia por três meses, Jesus se retira com seus discípulos para as margens do Jordão, a menos de um dia de distância. Lá, um mensageiro o procura com a notícia de que Lázaro está enfermo. Mas o mensageiro não se refere a Lázaro pelo nome. Ele descreve (João 11:3) o homem doente como alguém de importância muito especial: "Senhor, está enfermo aquele que tu amas." A reação de Jesus é estranha. Ao invés de retornar imediatamente para socorrer o homem que supostamente ama, ele ignora o assunto (11:4): "E ouvindo isto Jesus disse-lhes: 'Esta enfermidade não se encaminha a morrer, mas a dar glória a Deus, para o filho de Deus ser glorificado por ela. '" Se estas palavras são surpreendentes, suas ações o são ainda mais (11:6): "Quando ouviu que ele estava doente, deixou-se então ficar ainda dois dias no mesmo lugar."

Em suma, Jesus ainda gasta dois dias no Jordão, apesar das alarmantes notícias que havia recebido. Final­mente, decide retornar a Betânia. E então contradiz flagrantemente sua afirmação anterior, ao dizer aos discípulos que Lázaro estava morto. Mas ainda se mostra impassível. Afirma simplesmente que a "morte" de Lázaro tinha servido a algum propósito e deve ser levada em conta (11:11): "Nosso amigo Lázaro dorme: mas eu vou despertá-lo do sono." E quatro versículos depois ele virtualmente admite que todo o assunto tinha sido uma encenação cuidadosa e previamente arranjada (11:15): "E eu por amor de vós folgo de não me ter achado lá, para que acrediteis. Mas vamos a ele." Se tal comportamento é chocante, a reação dos discípulos não o é menos (11:16): "Disse então Tomé, chamado Dídimo, aos outros discípulos: 'Vamos nós também, para morrermos com ele. '" O que significa isto? Se Lázaro está literalmente morto, certamente os discípulos não têm a intenção de juntar-se a ele num suicídio coletivo! E como se pode explicar a negligência do próprio Jesus, a fria indiferença com a qual ele ouve a notícia sobre a doença de Lázaro e retarda seu retorno a Betânia?

A explicação poderia residir, como sugere o professor Morton Smith, em uma iniciação mais ou menos padrão de uma "escola de mistério". Como demonstra o professor Smith, tais iniciações e seus rituais eram comuns na Palestina da época de Jesus. Eles envolviam freqüentemente uma morte e um renascimento simbólicos, que eram chamados assim, com estes nomes. O seqüestro em uma tumba, que se tornava o útero para o renascimento do aspirante; um ritual, agora chamado batismo, com uma imersão simbólica em água; e um copo de vinho, identificado com o sangue do profeta ou mago que presidia a cerimônia. Ao beber de tal copo, o discípulo consumava uma união simbólica com seu mestre, o primeiro tornando-se misticamente "um" com o segundo.

Como ressalta o professor Smith, a carreira de Jesus é muito similar à de outros magos, curadores e milagreiros da época. Ao longo dos quatro Evangelhos, por exemplo, ele se encontra secretamente com as pessoas que vai curar, ou fala com eles a sós. Depois, freqüentemente lhes pede para não divulgar o que foi mostrado ou falado. E, para o público em geral, ele se expressa habitualmente através de alegorias e parábolas.

Durante a estada de Jesus no Jordão, Lázaro teria começado um ritual típico de iniciação, que levaria, como tais rituais normalmente fazem, a uma ressurreição e um nascimento simbólicos. Nesta linha, o desejo dos discípulos de "morrer com ele" se torna perfeitamente compreensível, e o mesmo se dá com a complacência de Jesus em relação ao assunto, de outro modo inexplicável. Maria e Martha pareciam genuinamente desesperadas, assim como várias outras pessoas. Mas elas podem simplesmente ter entendido mal ou construído mal o objetivo do exercício. Ou talvez alguma coisa tivesse dado errado durante a iniciação, uma ocorrência comum. Ou talvez todo o assunto tenha sido uma peça de teatro engenhosamente preparada, cuja verdadeira natureza e objetivo fossem conhecidos por muito poucos.

Este incidente reflete um ritual de iniciação, e Lázaro está recebendo um tratamento muito especial. Entre outras coisas, está aparentemente sendo iniciado antes de qualquer dos discípulos, que parecem invejosos de seu privilégio. Mas por que deveria este homem desconhecido, de Betânia, ser destacado? Por que deveria ele submeter-se a uma experiência na qual os discípulos estavam ansiosos para acompanhá-lo? Por que, muito depois, deveriam "hereges" misticamente orientados, como os carpocracianos, dar tanta ênfase ao assunto? E por que deveria o episódio inteiro ser expurgado do Evangelho de Marcos? Talvez porque Lázaro fosse "aquele a quem Jesus amava" mais do que aos outros discípulos. Talvez porque Lázaro tenha tido uma conexão especial com Jesus, a de cunhado. Talvez por ambas as razões. É possível que Jesus tenha conhecido e amado Lázaro precisamente porque ele era seu cunhado. Em todo caso, o amor é repetidamente enfatizado. Quando Jesus retorna a Betânia e chora, ou pretende chorar, pela morte de Lázaro, os circundantes ecoam as palavras do mensageiro (João 11:36): "Vejam como ele o amava!”

O autor do Evangelho de João, o Evangelho que conta a história de Lázaro, não se identifica em nenhum momento como "João". Não se nomeia. Contudo ele refere-se a si mesmo com uma denominação singular. Constantemente se denomina "o discípulo amado", "aquele a quem Jesus amava", e insinua claramente que gozava de uma condição única e preferida, acima da de seus confrades. Na última ceia, por exemplo, ele mostra flagrantemente sua proximidade pessoal com Jesus, e só a ele Jesus confidencia os meios pelos quais a traição iria ocorrer (João 13:23-6):

Um dos seus discípulos, ao qual amava Jesus, estava recostado à mesa no seio de Jesus. A este pois fez Simão Pedro um sinal e disse-lhe: "De quem ele fala?" Aquele discípulo pois tendo-se reclinado sobre o peito de Jesus, perguntou-lhe: "Senhor, quem é esse?" Respondeu Jesus: "É aquele a quem eu der o pão molhado." E tendo molhado o pão, deu-o a Judas, filho de Simão Iscariotes.

Quem é este "discípulo amado", em cujo testemunho o quarto Evangelho se baseia? Todas as evidências sugerem que ele é de fato Lázaro, "ao qual amava Jesus". Parece então que Lázaro e o "discípulo amado" são a mesma pessoa, e que Lázaro é a verdadeira identidade de "João". Esta conclusão parece quase inevitável, e não fomos os únicos a chegar a ela. Segundo o professor William Brownlee, um estudioso bíblico importante e um dos mais reconhecidos especialistas nos Manuscritos do Mar Morto, "a partir de evidências internas no quarto Evangelho (...) a conclusão é que o discípulo amado é Lázaro de Betânia".

Se Lázaro é o "discípulo amado", seu misterioso desaparecimento da narrativa das Escrituras e sua aparente ausência durante a crucificação estão explicados. Pois se ambos são o mesmo, ele teria estado presente na crucificação. E Jesus teria confiado a ele o cuidado de sua mãe. As palavras com as quais ele o fez poderiam bem ser as de um homem referindo-se ao seu cunhado (João 19:26-27):

Jesus pois tendo visto sua mãe, e ao discípulo que ele amava, o qual estava presente, disse a sua mãe: "Mulher, eis aí teu filho." Depois disse ao discípulo: "Eis aí tua mãe." E desta hora em diante a tomou o discípulo para sua casa.

A última palavra desta citação é particularmente reveladora. Pois os outros discípulos tinham deixado seus lares na Galiléia e, para todos os efeitos, não tinham casa. Todavia, Lázaro tinha uma casa, aquela casa em Betânia, onde o próprio Jesus costumava ficar.
Depois de ser sentenciado à morte pelos sacerdotes, Lázaro não é mais mencionado nominalmente. Parece ter desaparecido. Mas se ele era de fato o "discípulo amado", não desapareceu. Neste caso, seus movimentos e atividades podem ser traçados até o final do quarto Evangelho. Aqui também existe um episódio curioso que merece exame. No final do quarto Evangelho, Jesus prevê a morte de Pedro e  instrui Pedro a "segui-lo" (João 21 :20-24):

Voltando Pedro, viu que o seguia aquele discípulo que Jesus amava, que ao tempo da ceia estivera até reclinado sobre o seu peito, e lhe perguntara: "Senhor, quem é o que te há de trair?" Assim que como Pedro viu a este, disse para Jesus: "Senhor, e este quê?" Disse-lhe Jesus: "Eu quero que ele fique assim até que eu venha; que tens tu com isso? Segue-me tu.” Correu logo esta voz entre os irmãos, que aquele discípulo não morreria. E não lhe disse Jesus: "Não morre", senão: "Eu quero que ele fique assim, até que eu venha; que tens tu com isso?" Este é aquele discípulo que dá testemunho destas coisas, e que as escreveu: e nós sabemos que é verdadeiro o seu testemunho.

Apesar desta fraseologia ambígua, a importância desta passagem parece clara. O "discípulo amado" foi explicitamente instruído a esperar pelo retorno de Jesus. E o texto em si é bastante enfático ao reafirmar que este retorno não é para ser entendido de forma simbólica, como uma "segunda vinda". Ao contrário, ele insinua algo mais mundano. Após despachar seus outros seguidores pelo mundo, Jesus deve retornar em breve com alguma tarefa especial para o "discípulo amado". É quase como se eles tivessem arranjos específicos e concretos para concluir, e planos para realizar.

Se o "discípulo amado" era Lázaro, tal cumplicidade, desconhecida pelos outros discípulos, pareceria ter um precedente. Na semana anterior à crucificação, Jesus faz sua entrada triunfal em Jerusalém. De acordo com as profecias do Velho Testamento sobre um Messias, ele deve estar montando um asno (Zacarias 9:9-10). Então, um asno deve ser encontrado. No Evangelho de Lucas, Jesus envia dois discípulos a Betânia, onde, diz ele, encontrarão um asno esperando por eles. Eles são instruídos a dizer ao dono do animal que o "Mestre necessita dele". Quando tudo ocorre exatamente como Jesus tinha previsto, isto é considerado uma espécie de milagre. Mas existiria aí algo de extraordinário ou se tratava de planos cuidadosamente elaborados? E não poderia o homem de Betânia, que fornece o asno, ser Lázaro?

Esta é certamente a conclusão do professor Hugh Schonfield. Ele argumenta convincentemente que os arranjos para a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém haviam sido confiados a Lázaro, e que os outros discípulos os desconheciam. Se este foi realmente o caso, isto implica a existência de um círculo interno de seguidores de Jesus, um núcleo de colaboradores, co-conspiradores ou familiares que, apenas eles, recebiam as confidências do mestre. O professor Schonfield acredita que Lázaro fazia parte de tal círculo. E sua crença reforça a insistência do professor Smith no tratamento preferencial que Lázaro recebia em virtude de sua iniciação, ou morte simbólica, em Betânia. É possível que Betânia tenha sido um centro de culto, um local reservado para os rituais singulares presididos por Jesus.

Em todo caso, a cumplicidade que parece produzir um asno do "homem de Betânia" pode bem estar se revelando novamente no misterioso final do quarto Evangelho, quando Jesus ordena que o "discípulo amado" espere o seu retorno. Pareceria que ele e o "discípulo amado" tinham planos a realizar. E não é absurdo assumir que estes planos incluíam cuidar da família de Jesus. Durante a crucificação, ele já tinha confiado sua mãe ao "discípulo amado". Se ele tivesse mulher e filhos, eles seriam também confiados ao "discípulo amado". Isto, certamente, seria mais plausível se o "discípulo amado" fosse de fato seu cunhado.

De acordo com a tradição posterior, a mãe de Jesus veio a morrer no exílio, em Éfeso, onde o quarto Evangelho teria surgido depois. Não há qualquer indicação, contudo, de que o "discípulo amado" tenha cuidado da mãe de Jesus durante todo o resto da sua vida. Segundo o professor Schonfield, o quarto Evangelho provavelmente não foi composto em Éfeso, mas somente retrabalhado, revisado e editado lá por um grego idoso, que trabalhou segundo suas próprias idéias.

Se o "discípulo amado" não foi para Éfeso, o que aconteceu com ele? Se ele e Lázaro são a mesma pessoa, esta pergunta pode ser respondida, pois a tradição é bastante explícita sobre o que aconteceu com Lázaro: Segundo a tradição, e segundo alguns escritores antigos da Igreja, Lázaro e Madalena, Martha, José de Arimatéia e alguns outros foram transportados por navio até Marselha. Lá, José teria sido consagrado por São Filipe e enviado à Inglaterra, onde estabeleceria a Igreja de Glastonbury. Lázaro e Madalena, contudo, teriam permanecido na Gália. A tradição afirma que Madalena morreu em Aix­-en-Provence ou em Saint Baume, e Lázaro em Marselha, após haver fundado lá o primeiro bispado. Um de seus companheiros, São Maxi­min, teria fundado o primeiro bispado de Narbonne.

Se Lázaro e o "discípulo amado" forem a mesma pessoa, haverá uma explicação para o desaparecimento conjunto de ambos. Lázaro, o verdadeiro "discípulo amado", parece ter sido levado a Marselha juntamente com sua irmã que, como afirma a tradição posterior, carregou com ela o cálice sagrado, o "sangue real". E os arranjos para sua fuga e exílio parecem ter sido feitos pelo próprio Jesus, juntamente com o "discípulo amado", no final do quarto Evangelho.

Se Jesus foi realmente casado com Madalena, poderia tal casamento ter servido a algum propósito? Em outras palavras, poderia ele ter significado algo mais que um casamento convencional? Poderia ter sido uma aliança dinástica de algum tipo, com repercussões e implicações políticas? Em suma, poderia uma estirpe resultante desse casamento ter garantido o nome "sangue real"?

Próximo Post: A Dinastia de Jesus


Lázaro: O Discípulo Amado e Cunhado de Jesus

sábado, 7 de abril de 2012

Especial Semana Santa: A Esposa de Jesus

Se Jesus era casado, existe nos Evangelhos alguma indicação da identidade de sua mulher?
Como primeira consideração, parece haver duas candidatas, pois, além de sua mãe, duas mulheres são mencionadas repetidamente nos Evangelhos como integrantes de seu círculo. A primeira é Madalena, do vilarejo de Migdal, ou Magdala, na Galiléia. O papel desta mulher é singularmente ambíguo nos quatro Evangelhos e parece ter sido deliberadamente obscurecido. Nas narrativas de Marcos e de Mateus ela só é mencionada nominalmente em passagens tardias. Aparece na Judéia, no tempo da crucificação, e é citada entre os seguidores de Jesus. No Evangelho de Lucas, contudo, ela aparece relativamente cedo no ministério de Jesus, enquanto ele ainda está pregando na Galiléia. Ela teria acompanhado desde a Galiléia até a Judéia, ou, pelo menos, teria se movido entre as duas províncias tão rapidamente quanto ele. Isto em si sugere fortemente que ela era casada com alguém. Na Palestina do tempo de Jesus seria impensável que uma mulher não casada viajasse desacompanhada. Mais impensável ainda seria viajar desacompanhada e junto com um mestre religioso e seu círculo.

Se não considerarmos a tradição popular, Madalena não é em nenhum ponto mencionada nos Evangelhos como uma prostituta. Quando é mencionada no Evangelho de Lucas, é descrita como uma mulher "da qual vieram sete véus". Assume-se geralmente que esta frase se refere a uma espécie de exorcismo por parte de Jesus, significando que Madalena era "possuída". Mas a frase pode igualmente se referir a algum tipo de conversão e/ou ritual de iniciação. O culto a Ishtar ou Astarte, deusa-mãe e rainha do céu, envolvia, por exemplo, uma iniciação em sete estágios. Antes de sua afiliação a Jesus, Madalena pode bem ter sido associada a tal culto. Migdal ou Magdala era o "vilarejo das pombas", e existem evidências de que lá eram criadas pombas destinadas a sacrifícios. E a pomba era o símbolo sagrado de Astarte.

Um capítulo antes de falar de Madalena, Lucas menciona uma mulher que abençoou Jesus. No Evangelho de Marcos existe uma bênção, similar por uma mulher não identificada. Nem Lucas nem Marcos identificam explicitamente essa mulher como sendo Madalena, mas Lucas registra que ela era uma "mulher caída", uma "pecadora". Comentaristas posteriores assumiram que Madalena, tendo aparentemente sete véus retirados, devia ter sido uma pecadora. Nestas bases, a mulher que abençoa Jesus e Madalena vieram a ser consideradas a mesma pessoa. Podem ter sido. Se Madalena era associada a um culto pagão, isto poderia tê-la tornado uma "pecadora" aos olhos não somente de Lucas, mas também dos escritores que se seguiram.

Se Madalena era uma "pecadora", ela era também, claramente, algo mais que a prostituta comum da tradição popular. Era certamente uma mulher de meios. Lucas registra, por exemplo, que entre seus amigos estava a mulher de um alto dignitário da corte de Herodes. Ambas as mulheres, juntamente com outras, apoiavam Jesus e seus discípulos com recursos financeiros. A mulher que abençoou Jesus era também uma mulher de meios. No Evangelho de Marcos grande ênfase é colocada no alto preço do óleo de unção utilizado no ritual.

Todo o episódio da unção teria sido um assunto de importância considerável. Por que ele é tão enfatizado nos Evangelhos? Dada a sua proeminência, parece ser algo mais que um gesto espontâneo e impulsivo. Parece um ritual cuidadosamente premeditado. Deve-se lembrar que a unção é uma prerrogativa tradicional de reis e do Messias de Direito, que significa "aquele que recebeu a unção". A partir daí, segue-se que Jesus se torna um autêntico messias em virtude de sua unção. E a mulher que o consagra nesse augusto papel não pode deixar de ser importante.

Em todo caso, é evidente que Madalena, no final da carreira de Jesus, tinha se tornado um personagem de imensa importância. Nos três Evangelhos sinópticos, seu nome encabeça consistentemente a lista de mulheres que seguiam Jesus, da mesma forma que Simão Pedro encabeça a lista de discípulos homens. Ela é a primeira testemunha da tumba vazia após a crucificação. Para revelar a ressurreição, Jesus escolheu Madalena entre todos os seus devotos.

Ao longo dos Evangelhos, Jesus trata Madalena de uma forma singular e preferencial. Tal tratamento pode muito bem ter induzido o ciúme em outros discípulos. Seria bastante óbvio que a tradição posterior pensasse em obscurecer o papel de Madalena, se não seu nome. O retrato dela como uma prostituta pode bem ter sido o resultado de um procedimento vingativo de impugnar a reputação de uma mulher cuja associação com Jesus era mais estreita do que a deles, e que inspirava em todos uma inveja bem humana. Se outros cristãos, durante a vida de Jesus ou depois, ressentiram-se do laço único de Madalena com seu líder espiritual, pode bem ter existido uma tentativa de diminuí-la aos olhos da posteridade. E não há dúvida de que ela foi diminuída. Mesmo hoje se pensa nela como uma prostituta.

Qualquer que tenha sido a condição de Madalena nos Evangelhos, ela não é a única candidata possível à esposa de Jesus. Existe outra, que figura de forma mais proeminente no quarto Evangelho e pode ser identificada como Maria de Betânia, irmã de Martha e Lázaro. Ela e sua família se relacionam em termos muito familiares com Jesus. Eles também eram abastados, possuindo uma casa em um subúrbio da moda de Jerusalém, grande o bastante para acomodar Jesus e todo o seu círculo. Além disso, o episódio de Lázaro revela que essa casa continha uma tumba particular, naquele tempo, um luxo um tanto extravagante, não somente um sinal de riqueza mas também de uma posição que atesta conexões aristocráticas. Na Jerusalém bíblica, assim como em qualquer cidade moderna, terras eram valiosas, e muito poucos podiam dar-se ao luxo de um local funerário privado.

Quando, no quarto Evangelho, Lázaro cai doente, Jesus havia deixado Betânia por alguns dias e estava no Jordão com seus discípulos. Após ouvir o que havia acontecido, ele permanece ainda por dois dias, uma reação bastante curiosa e então retorna a Betânia, onde Lázaro estava na tumba. Quando se aproxima, Martha corre para encontrá-lo e grita (João 11:21): "Senhor, se tu houveras estado aqui não morrera meu irmão." Trata-se de uma afirmação chocante. Por que a presença física de Jesus teria impedido a morte do homem? Mas o incidente é significativo, porque Martha, ao saudar Jesus, está sozinha. Seria de se esperar que Maria, sua irmã, estivesse com ela. Entretanto, Maria está sentada dentro de casa e não aparece até que Jesus explicitamente lhe ordena que o faça. O ponto se torna mais claro no Evangelho "secreto" de Marcos, descoberto pelo professor Morton Smith e citado na postagem “O Rei Sacerdote que Nunca Reinou”. Na narrativa suprimida, Maria teria saído de casa antes da instrução de Jesus para fazê-lo, tendo sido pronta e bruscamente repudiada por seus discípulos, os quais Jesus é obrigado a calar.

Seria bastante plausível que Maria estivesse sentada dentro da casa quando Jesus chegou em Betânia. De acordo com o costume judeu, ela estaria em shiveh, sentada em sinal de luto. Mas por que ela não se reúne a Martha e corre a encontrar Jesus que retorna? Existe uma explicação óbvia. Pelos mandamentos da lei judaica da época, uma mulher em shiveh era estritamente proibida de sair de casa, exceto por ordem expressa de seu marido. Neste incidente, o comportamento de Jesus e de Maria de Betânia é precisamente conforme com o comportamento tradicional de um homem judeu e sua esposa.

Existem evidências adicionais para um possível casamento entre Jesus e Maria de Betânia. Elas aparecem, mais ou menos como um non sequitor, no Evangelho de Lucas (10:38-42):

E aconteceu que como fossem de caminho, entrou depois Jesus em uma aldeia: uma mulher, por nome de Martha, o hospedou em sua casa. E esta tinha uma irmã chamada Maria, "a qual até sentada aos pés do Senhor ouvia a sua palavra. Matha porém andava toda fadiga na contínua lida da casa, a qual se apresentou diante de Jesus, e disse: “Senhor, a ti não se te dá que minha irmã me deixasse andar servindo só? Dize-lhe, pois, que me ajude”. E respondendo o Senhor, lhe disse: "Martha, Martha, tu andas muito inquieta, e te embaraças com o cuidar em muitas coisas. Entretanto só uma coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada”.

A partir do apelo de Martha, parece claro que Jesus exercia alguma autoridade sobre Maria. O mais importante, entretanto, é a resposta de Jesus. Em outro contexto não se hesitaria em interpretar esta resposta como uma alusão a um casamento. Em todo caso, ela "sugere que" Maria de Betânia era uma discípula tão ávida quanto Madalena.

Existem razões substanciais para se considerar Madalena e a mulher que abençoa Jesus como sendo a mesma pessoa. Poderia esta pessoa também ser Maria de Betânia, irmã de Lázaro e de Martha? Poderiam estas mulheres, que, nos Evangelhos, aparecem em três contextos diferentes , ser na realidade uma só pessoa? A Igreja medieval certamente as considerava como tal, assim como a tradição popular. Muitos estudiosos bíblicos hoje concordam com isso, e existem evidências abundantes a favor desta conclusão.

Os Evangelhos de Mateus, Marcos e João, por exemplo, citam Madalena como alguém presente na crucificação. Nenhum deles cita Maria de Betânia. Mas se ela fosse um discípulo tão devotado, como parecia ser, sua ausência pareceria no mínimo uma omissão. É plausível que ela, para não falar de seu irmão Lázaro, deixasse de testemunhar o momento-chave da vida de Jesus? Tal omissão seria inexplicável e repreensível, a menos, é claro, que ela estivesse presente e citada nos Evangelhos sob à nome de "Madalena. Se Madalena e Maria de Betânia são uma só pessoa, não cabe a questão de esta última ter estado ausente na crucificação.

Madalena pode ser identificada como Maria de Betânia. Pode também ser identificada como a mulher que abençoa Jesus. De forma bastante explícita, o quarto Evangelho identifica a mulher da unção de Jesus como Maria de Betânia (João, 11:1-2):

Estava pois enfermo um homem, chamado Lázaro, que era da aldeia de Betânia, onde assistiam Maria e Martha, suas irmãs. (E foi esta Maria aquela que ungiu o Senhor com o bálsamo, e lhe limpou os pés com os seus cabelos; cujo irmão Lázaro estava enfermo.)

E novamente, um capítulo depois (João 12:1-3):

Seis dias pois antes da Páscoa veio Jesus a Betânia, onde morrera Lázaro, a que Jesus ressuscitou. E deram-lhe lá uma ceia: na qual servia Martha e onde Lázaro era um dos que estavam à mesa com ele. Tomou Maria então uma libra de bálsamo, feito de nardo puro de grande preço e ungiu os pés de Jesus e lhe enxugou os pés com os seus cabelos: e ficou cheia, toda a casa do cheiro de bálsamo.

Portanto, é evidente que Maria de Betânia e a mulher que abençoa Jesus são a mesma pessoa. Se não é igualmente claro, é certamente provável que esta mulher seja também Madalena. Se Jesus era de fato casado, só haveria uma candidata à esposa para ele: uma mulher que aparece freqüentemente nos Evangelhos sob diferentes nomes e com diferentes papéis.

Se Madalena e Maria de Betânia são a mesma mulher, e se esta mulher foi a esposa de Jesus, Lázaro teria sido seu cunhado. Existe nos Evangelhos alguma evidência de que Lázaro tinha tal posição?

Maria de Betânia - Esposa de Jesus


Na próxima postagem: O Discípulo Amado

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Especial Semana Santa: O Estado Marital de Jesus

Não é minha intenção desacreditar os Evangelhos. Procuro localizar neles alguns fragmentos de verdade possível ou provável, extraindo-os da matriz bordada ao seu redor. Busco principalmente fragmentos de um tipo bem-definido, aqueles que pudessem indicar um casamento entre Jesus e a mulher conhecida como Madalena. É desnecessário dizer que essas informações não estariam explícitas. Para encontrá-las, temos que lidar com omissões, insinuações e referências oblíquas. E não podemos procurar apenas evidências de um casamento, mas evidências de circunstâncias que pudessem ter conduzido a um casamento. Devemos então nos fazer algumas perguntas. Comecemos com a mais óbvia delas: existe nos Evangelhos alguma evidência, direta ou indireta, que sugira que Jesus era casado?

Não existe, é claro, uma afirmação explícita. Por outro lado, não existe nenhuma afirmação explícita de que ele não era, e isto é mais curioso e mais importante do que possa parecer. Como já observou o Dr. Geza Vermes, da Universidade de Oxford, "há um silêncio completo nos Evangelhos quanto ao estado marital de Jesus. (...) Tal estado de coisas é suficientemente estranho no judaísmo para estimular pesquisas a respeito."

Os Evangelhos afirmam que muitos dos discípulos , Pedro, por exemplo, eram casados. E em nenhum ponto o próprio Jesus advoga o celibato. Pelo contrário, no Evangelho de Mateus (19:4-5) ele declara: "Não tendes lido que quem criou o homem, desde o princípio, fê-los macho e fêmea, e disse: Por isso deixará o homem pai e mãe, e ajuntar-se-á com sua mulher, e serão os dois numa só carne?'" Tal declaração não pode ser reconciliada com uma invocação ao celibato. E se Jesus não pregou o celibato, não há razão para supor que ele o tenha praticado. Segundo o costume judaico da época, não era somente usual, mas quase obrigatório que um homem fosse casado. Era obrigatório a um pai judeu encontrar uma esposa para seu filho, da mesma forma que o era assegurar sua circuncisão.
Se Jesus não fosse casado, este fato teria sido flagrantemente conspícuo. Teria chamado a atenção, sendo usado para caracterizá-lo e identificá-lo. Teria colocado Jesus à parte de seus contemporâneos, de forma significativa. Se este tivesse sido o caso, pelo menos um dos Evangelhos mencionaria tão marcante desvio dos costumes. Se Jesus fosse de fato celibatário, como pretende a tradição posterior, é extraordinário que não exista referência a isso. A ausência de tal referência sugere fortemente que Jesus, no que diz respeito ao celibato, vivia conforme as convenções de sua época e de sua cultura, em suma, que ele era casado. Só isto explica satisfatoriamente o silêncio dos Evangelhos sobre o assunto. O argumento é resumido por um respeitado teólogo contemporâneo:
Dado o pano de fundo cultural na forma como foi testemunhado (...) é muito improvável que Jesus não se tenha casado antes de começar sua vida pública. Se ele tivesse insistido no celibato, isso teria criado um frêmito, uma reação, que teria deixado algum traço. Assim, a falta de comentário sobre o casamento de Jesus nos Evangelhos é um forte argumento, não contra mas a favor da hipótese de casamento, porque qualquer prática ou defesa do celibato voluntário, no contexto judeu da época, teria sido tão estranha que teria atraído muita atenção e comentários.
A hipótese de casamento se torna ainda mais aceitável em virtude do título de rabino ter sido freqüentemente atribuído a Jesus nos Evangelhos. É possível, é claro, que este termo tenha sido empregado em seu sentido mais amplo, significando simplesmente um professor auto-nomeado. Mas o saber de Jesus, sua demonstração de conhecimento perante os anciãos do Templo, por exemplo, sugere fortemente que ele era mais que um autodidata. Jesus deve ter seguido algum tipo de treinamento formal e era oficialmente reconhecido como um rabino. Isto estaria conforme a tradição, que descreve Jesus como um rabino no sentido estrito do termo. Mas se Jesus era um rabino em sentido estrito, um casamento não teria sido provável, mas certo. A lei judia é explícita: "Um homem não casado não pode ser professor."
No quarto Evangelho há um episódio relacionado a um casamento que pode ter sido do próprio Jesus. Trata-se do casamento de Canaã, uma história que, apesar de bastante familiar, provoca algumas perguntas que merecem consideração. De acordo com a narrativa, o casamento de Canaã teria sido uma cerimônia local modesta, um típico casamento de vilarejo, cujos noivos permanecem anônimos. Para este casamento Jesus foi especificamente "chamado", o que talvez seja ligeiramente curioso, pois ele ainda não tinha começado seu ministério como rabino. Mais curioso, contudo, é o fato de que sua mãe "simplesmente" se encontra presente. E sua presença é tida como normal, embora não seja de nenhum modo explicada.
Além disso, Maria não só sugere a seu filho, mas na verdade lhe ordena que reponha o vinho. Comporta-se como se fosse a anfitriã (João 2:3-4): "E faltando o vinho, a mãe de Jesus lhe disse: 'Eles não têm vinho.' E Jesus respondeu: 'Mulher, que importa isso a mim e a vós? Ainda não é chegada a minha hora.'" Mas Maria, completamente à vontade, ignora o protesto do filho (João 2:5): "Disse a mãe de Jesus aos que serviam: 'Fazei tudo o que ele vos disser.'" E os servos prontamente obedeceram, como se estivessem acostumados a receber ordens de Maria e de Jesus.
Apesar da aparente tentativa de Jesus de repudiá-la, Maria prevalece; e Jesus realiza seu primeiro grande milagre, a transmutação de água em vinho. No que concerne aos Evangelhos, ele não tinha ainda demonstrado seus poderes; e não havia nenhuma razão para que Maria assumisse que ele os possuía. Mas mesmo que houvesse, por que deveriam tais dons, singulares e sagrados, ser empregados com um propósito tão banal? Por que deveria Maria fazer tal pedido ao seu filho? E, mais importante, por que deveriam dois "convidados" a um casamento tomar sobre si a responsabilidade de servir, uma responsabilidade que, por costume, seria reservada ao anfitrião? A menos, é claro, que o casamento em Canaã fosse o próprio casamento de Jesus. Nesse caso, seria sua a responsabilidade de servir o vinho.
Existem mais evidências de que o casamento em Canaã foi, de fato, o de Jesus. Imediatamente depois do milagre do vinho, o organizador da festa, que "governava a mesa", um tipo de mordomo ou mestre de cerimônias, prova o vinho recém-produzido. Em seguida, lemos em João (2:9-10): "O que governava a mesa (...) chamou o noivo e disse-lhe: 'Todo homem põe primeiro o bom vinho: e quando já os convidados têm bebido bem, então lhes apresenta o inferior. Tu, ao contrário, tiveste o bom vinho guardado até agora.'" Estas palavras parecem claramente dirigidas a Jesus. Segundo o Evangelho, contudo, elas são dirigidas ao "noivo". Uma conclusão óbvia é que Jesus e o noivo são a mesma pessoa. Mas se Jesus é o noivo, quem é a noiva?
Bodas de Canaã - Casamento de Jesus
 

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Especial Semana Santa: A História dos Evangelhos

Os Evangelhos surgiram de uma realidade histórica reconhecível e concreta; uma realidade de opressão, descontentamento cívico e social, ansiedade política, perseguições incessantes e rebeliões intermitentes. Os estudiosos modernos são unânimes em dizer que os Evangelhos não são do tempo de Jesus. Datam, em sua maior parte, do período entre as duas principais revoltas na Judéia, 66 a 74 d.C. e 132 a 135 d.C., sendo quase certamente baseados em narrativas anteriores. Estas narrativas podem ter incluído documentos escritos que se perderam, pois houve uma destruição massiva dos registros no despertar da primeira revolta. Mas havia, certamente, tradições orais. Algumas eram grosseiramente exageradas e/ou distorcidas, recebidas e transmitidas de segunda, terceira ou quarta mão. Outras, contudo, podem ter derivado de pessoas que viveram na época de Jesus e podem tê-lo conhecido pessoalmente. Um homem que fosse jovem no tempo da crucificação pode ter vivido também na época em que os Evangelhos foram escritos.

O primeiro dos Evangelhos é geralmente considerado como sendo o de Marcos, escrito durante a revolta de 66-74 d.C. ou logo depois, exceto por seu tratamento da ressurreição, que é uma adição posterior e espúria. Embora ele próprio não tenha sido um dos discípulos originais de Jesus, Marcos parece ter vindo de Jerusalém. Parece ter sido companheiro de São Paulo, e seu Evangelho porta o caráter inconfundível do pensamento paulino. Mas se Marcos era nativo de Jerusalém, seu Evangelho, como afirma Clemente de Alexandria, foi escrito em Roma e endereçado a uma audiência greco-romana. Isto, por si só, explica muita coisa. Na época em que o Evangelho de Marcos foi composto, a Judéia estava, ou tinha estado recentemente, em plena revolta, e milhares de judeus estavam sendo crucificados por se rebelarem contra o regime romano. Se Marcos quisesse que seu Evangelho sobrevivesse e se impusesse a uma audiência romana, não podia de forma alguma apresentar Jesus como um anti-romano. Não podia apresentar um Jesus politicamente orientado. Para assegurar a sobrevivência de sua mensagem, ele foi obrigado a aliviar os romanos de toda a culpa pela morte de Jesus, limpando o regime e culpando alguns judeus pela morte do Messias. Este artifício foi adotado não somente pelos autores dos outros Evangelhos, mas também pela antiga Igreja cristã. Sem tal artifício, nem os Evangelhos nem a Igreja teriam sobrevivido.

Estudiosos datam o Evangelho de Lucas em aproximadamente 80 d.C. Lucas parece ter sido um médico grego que compôs seu trabalho para um oficial romano de alto escalão em Cesarea, a capital romana da Palestina. Assim, também para Lucas teria sido necessário aplacar e apaziguar os romanos, transferindo a culpa para outro lugar.
Na época em que o Evangelho de Mateus foi composto,  aproximadamente 85 d.C., tal transferência parece ter sido aceita como um fato estabelecido e não foi questionada. Mais da metade do Evangelho de Mateus, de fato, deriva diretamente do de Marcos, embora este tenha sido composto originalmente em grego e reflita características especificamente gregas. O autor parece ter sido um judeu, possivelmente um refugiado da Palestina. Ele não deve ser confundido com o discípulo chamado Mateus, que viveu muito antes, provavelmente falando só o aramaico.
Os Evangelhos de Marcos, Lucas e Mateus são conhecidos coletivamente como os "Evangelhos sinópticos", significando que eles vêem "olho no olho", ou "com um olho",  o que, é claro, não fazem. Entretanto, existem superposições suficientes entre eles para sugerir que sejam derivados de uma fonte comum, uma tradição oral ou algum outro documento perdido depois. Isto os distingue do Evangelho de João, no qual transparecem origens diferentes.
Nada se sabe sobre o autor do quarto Evangelho. Não existem razões para supor que seu nome tenha sido João. Com exceção de João Batista, o nome João não é mencionado em nenhuma passagem do Evangelho. A atribuição desse Evangelho, o último do Novo Testamento, composto por volta de 100 d.C. nas vizinhanças de Éfeso, na Turquia, a um homem chamado João é geralmente aceita como uma tradição posterior. Esse quarto Evangelho revela várias características singulares. Não há nele, por exemplo, a cena de natal, nenhuma descrição do nascimento de Jesus, e a introdução é quase gnóstica. O texto é decididamente de natureza mais mística do que o dos outros Evangelhos, e o conteúdo também difere. Os outros, por exemplo, se concentram primariamente nas atividades de Jesus na província a nordeste da Galiléia e refletem o que parece ser um conhecimento de segunda ou terceira mão dos eventos no sul, na Judéia e em Jerusalém, incluindo a crucificação. O quarto Evangelho, em contraste, diz relativamente pouco sobre a Galiléia. Lida exaustivamente com os eventos na Judéia e em Jerusalém, que concluem a carreira de Jesus, e sua narrativa da crucificação pode se basear em algum testemunho ocular. Também contém vários episódios e incidentes que não figuram nos outros Evangelhos: o casamento de Canaã, os papéis de Nicodemus e de José de Arimatéia, e a cura de Lázaro (embora este último tenha sido incluído no Evangelho de Marcos). Com base em tais fatores, estudiosos modernos têm sugerido que o Evangelho de João, a despeito de sua composição tardia, pode ser o mais fidedigno e historicamente acurado dos quatro.
Um estudioso moderno observa que o texto reflete um conhecimento topográfico aparentemente de primeira mão da Jerusalém de antes da revolta de 66 d.C. O mesmo autor conclui: "Por trás do quarto Evangelho existe uma velha tradição independente dos outros Evangelhos." Não é uma opinião isolada, mas a que prevalece entre os estudiosos da Bíblia. De acordo com outro autor, "o Evangelho de João, embora diferente da moldura cronológica de Marcos e mais tardio, parece conhecer uma tradição relacionada com Jesus que deve ser primitiva e autêntica".
É conclusivo então, que o quarto Evangelho era o mais fidedigno dos livros do Novo Testamento, embora ele tenha sido, como os outros, sujeito a alterações, edições, expurgos e revisões. E é  no quarto Evangelho que encontramos as evidências mais persuasivas para uma intrigante hipótese.

Uma das cópias mais antigas do Evangelho de João, considerados por muitos, um Evangelho Gnóstico

terça-feira, 3 de abril de 2012

Especial Semana Santa: A Palestina no Tempo de Jesus

No século I, a Palestina era um pedaço muito agitado do mundo. Durante algum tempo a Terra Santa tinha sido varrida por desavenças dinásticas, conflitos destruidores e, ocasionalmente, guerras. Durante o século II a.C., um reino judaico mais ou menos unificado foi estabelecido transitoriamente, segundo os dois livros apócrifos dos Maca­beus. Por volta de 63 a.C., contudo, a terra estava novamente em turbulência, madura para a conquista.

Mais de um quarto de século antes do nascimento de Jesus, a Palestina caiu sob o exército de Pompeu, e a lei romana foi imposta. Mas Roma, na época muito extensa e muito preocupada com seus próprios problemas, não estava em condições de instalar ali o aparelho administrativo necessário para um governo direto. Assim, ela criou uma linha de reis marionetes, a dos herodianos, para governar sob seu controle. Não eram judeus, mas árabes. O primeiro da linha foi Antipa­ter, que assumiu o trono da Palestina em 63 a.C. Com sua morte, em 37 a.C., ele foi sucedido por seu filho Herodes, o Grande, que reinou até 4 a.C.

No ano 6 d.C. a situação se tornou mais crítica. O país foi então dividido administrativamente em duas províncias, Judéia e Galiléia. Herodes Antipas tornou-se o rei desta última. Mas Judéia, a capital espiritual e secular, ficou sujeita à norma romana direta, administrada por um procurador romano baseado em Cesarea. O regime era brutal e autocrático. Ao assumir o controle direto da Judéia, mais de 2 mil rebeldes foram sumariamente crucificados. O Templo foi saqueado e destruído. Impostos pesados foram criados. A tortura passou a ser freqüentemente empregada, e muita gente cometia suicídio. Este estado de coisas não foi melhorado por Pôncio Pilatos, procurador da Judéia de 26 d.C. até 36 d.C. Em contraste com os retratos bíblicos feitos dele, os registros existentes indicam que Pilatos era um homem corrupto e cruel, que não só perpetuou, mas intensificou os abusos de seu predecessor. Pelo menos à primeira vista, é surpreendente que os Evangelhos não contenham críticas a Roma, nem menções ao peso da canga romana, sugerindo que os habitantes da Judéia eram plácidos e contentes com sua sina.

Os judeus da Terra Santa, na época, podiam ser divididos em várias seitas e subseitas. Havia, por exemplo, os saduceus, os fariseus, os essênios, e vale a pena citar os nazoritas, contudo, dos quais Sansão, séculos antes, tinha sido membro, e que ainda existiam no tempo de Jesus. E vale a pena citar também os nazoreanos ou nazarenos, um termo que parece ter sido aplicado a Jesus e seus seguidores. Realmente, a versão original grega do Novo Testamento se refere a "Jesus, o nazareno", expressão mal traduzida como "Jesus de Nazaré". Nazareno, em suma, diz respeito a uma seita, sem conexão com Nazaré.

A vida de Jesus se passou nos primeiros 35 anos, mais ou menos, de um turbilhão que se estendeu por 140 anos. O turbilhão não cessou com sua morte, mas continuou por mais um século. E gerou as expectativas psicológicas e culturais inevitáveis em tal situação de enfrentamento com um opressor. Uma destas expectativas era a esperança e espera de um Messias que libertasse seu povo do jugo romano. Foi somente em virtude de um acidente histórico e semântico que este termo veio a ser aplicado específica e exclusivamente a Jesus.

Para os contemporâneos de Jesus, nenhum Messias seria jamais considerado divino. Na realidade, a própria idéia de um Messias divino teria sido extravagante, se não impensável. A palavra grega para Messias é Christ ou Christos. O termo, em hebreu ou grego, significa simplesmente "abençoado" e se refere geralmente a um rei. Assim, quando Davi foi abençoado rei no Velho Testamento, ele se tornou explicitamente um Messias ou um Christ. E todos os reis judeus subseqüentes, da casa de Davi, eram conhecidos pelo mesmo nome. Mesmo durante a ocupação romana da Judéia, o alto sacerdote nomeado por Roma era conhecido como sacerdote Messias ou rei-sacerdote.

Todavia, para os zelotes e para outros oponentes de Roma, este sacerdote marionete era, necessariamente, um falso Messias. Para eles, o verdadeiro Messias significava algo muito diferente, o legítimo roi perdu, O descendente desconhecido da casa de Davi, que libertaria seu povo da tirania romana. Durante a vida de Jesus, a espera da vinda de tal Messias atingiu uma intensidade que beirava à histeria de massas. Esta espera continuou após a morte de Jesus. Realmente, a revolta de 66 d.C. foi instigada em grande parte pela agitação e propaganda feita pelos zelotes em nome de um Messias cujo advento seria iminente.

O termo Messias, então, não significava divino. Estritamente definido, significava simplesmente um rei abençoado; e, na mentalidade popular, veio a significar um rei abençoado que seria também um libertador. Em outras palavras, era um termo de conotação especificamente política, algo bem diferente da idéia cristã posterior de um "filho de Deus". Este termo, essencialmente mundano, foi usado para Jesus, chamado "Jesus, o Messias" ou, traduzido para o grego ­"Jesus, o Cristo". Só mais tarde é que esta designação se contraiu para "Jesus Cristo", e um título puramente funcional se distorceu em um nome próprio.

Palestina do Tempo de Jesus

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Especial Semana Santa: O Rei Sacerdote que Nunca Reinou

A maioria das pessoas hoje fala de cristandade como se se tratasse de uma coisa específica, uma entidade coerente, homogênea e unificada. É desnecessário dizer que cristandade não é nada disto. Como todos sabem, existem numerosas formas de cristandade, como o catolicismo romano e a igreja anglicana, iniciada por Henrique VIII. Existem múltiplas congregações evangélicas, como os adventistas do sétimo dia e as testemunhas de Jeová. E existem diversas seitas e cultos, como os filhos de Deus e a Igreja da Unificação do reverendo Moon. Assim, fica difícil determinar o que exatamente constitui a cristandade.

Se é que existe um único fator que nos permita falar de cristandade, um fator que ligue as diversas e divergentes crenças, este é o Novo Testamento, e mais particularmente a condição singular atribuída no Novo Testamento a Jesus, sua crucificação e ressurreição. Mesmo os que não subscrevem a verdade literal ou histórica desses eventos, se aceitam sua importância simbólica, são considerados cristãos.

Assim, se existe uma unidade no difuso fenômeno chamado cristandade, ela reside no Novo Testamento, e, mais especificamente, nas narrativas sobre Jesus conhecidas como os quatro Evangelhos. Estas narrativas são popularmente consideradas as de maior autoridade já registradas; muitos cristãos as consideram coerentes e incontestáveis. Os quatro evangelistas, supostos autores dos Evangelhos, são tidos como testemunhas inexpugnáveis que se reforçam e confirmam entre si. Entre as pessoas que hoje se denominam cristãs, relativamente poucas sabem que os quatro Evangelhos não somente se contradizem como, às vezes, discordam violentamente entre si.

No que diz respeito à tradição popular, a origem e o nascimento de Jesus são bem conhecidos. Mas os Evangelhos, nos quais essa tradição é baseada, são consideravelmente mais vagos sobre esse assunto. Somente dois dos Evangelhos, Mateus e Lucas, dizem alguma coisa sobre a origem e o nascimento de Jesus e se contestam flagrantemente. De acordo com Mateus, por exemplo, Jesus era um aristocrata, se não um rei legítimo e de direito, descendente de Davi, via Salomão. De acordo com Lucas, a família de Jesus, embora descendente da casa de Davi, era de uma classe menos elevada. Com base na narrativa de Marcos, por outro lado, surgiu a lenda do "pobre carpinteiro". São genealogias tão discordantes que podem inclusive estar se referindo a duas pessoas bem diferentes. As discrepâncias entre os Evangelhos não se esgotam na questão da genealogia de Jesus. De acordo com Lucas, Jesus, recém-nascido, foi visitado por pastores, de acordo com Mateus, foi visitado por reis. De acordo com Lucas, a família de Jesus vivia em Nazaré. A partir daí se diz que eles teriam viajado (para um censo que a história sugere nunca ter ocorrido)  a Belém, onde Jesus nasceu numa pobre manjedoura. Mas, de acordo com Mateus, a família de Jesus havia sido abastada e residira em Belém todo o tempo, Jesus havia nascido em uma casa. Nessa versão, a perseguição de Herodes aos inocentes impele a família a partir para o Egito, e só depois de seu retorno eles vivem em Nazaré.


Em cada uma dessas narrativas as informações são bastante específicas. Assumindo que o censo tenha de fato ocorrido, elas são perfeitamente plausíveis, embora discordantes. Esta contradição não pode ser racionalizada. Não há como as duas narrativas conflitantes serem corretas, e não há como reconciliá-las. Queiramos admiti-lo ou não, deve ser reconhecido o fato de que um dos Evangelhos está errado, ou ambos estão. Em face de tão inevitável conclusão, os Evangelhos não podem ser considerados incontestáveis. Como podem sê-lo se se impugnam um ao outro?

Quanto mais se estudam os Evangelhos, mais claras se tornam as contradições entre eles. Não concordam entre si nem mesmo quanto à data da crucificação. De acordo com o Evangelho de João, ela ocorreu no dia anterior ao da celebração da libertação dos escravos judeus no Egito. De acordo com os Evangelhos de Marcos, Lucas e Mateus, ocorreu um dia depois. Tampouco os Evangelhos estão de acordo em relação à personalidade e ao caráter de Jesus: um salvador humilde como um cordeiro (Lucas), um poderoso e majestoso soberano, que veio "trazer a espada e não a paz" (Mateus). Existe outra discordância sobre as últimas palavras de Jesus na cruz. Em Mateus e em Marcos estas palavras foram: "Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonastes?" Em Lucas, foram: "Pai, perdoai-os, pois eles não sabem o que fazem." Em João, simplesmente: "Está terminado.”
Dadas tais discrepâncias, os Evangelhos só podem ser considerados uma autoridade altamente questionável e certamente não definitiva. A Bíblia, deve ser lembrado e isto se aplica ao Velho e ao Novo Testamento, é uma seleção de trabalhos e em muitos aspectos, uma seleção arbitrária. Na realidade, ela poderia bem conter muito mais livros e escritos do que de fato contém. E não é uma questão de livros que tenham sido perdidos. Pelo contrário. Houve os deliberadamente excluídos.

Em 1958, por exemplo, o professor Morton Smith, da Universidade de Columbia, descobriu, em um monastério próximo a Jerusalém, uma carta que continha um fragmento inédito do Evangelho de Marcos. O fragmento não tinha sido perdido, mas aparentemente suprimido, sob a instigação, se não pedido expresso, do bispo Clemente de Alexandria, um dos mais venerados antigos padres da Igreja. Clemente, parece, tinha recebido uma carta de um certo Theodo­re, que reclamava de uma seita gnóstica, os carpocracianos. Os carpocracianos pareciam estar interpretando algumas passagens do Evangelho de Marcos segundo seus próprios princípios, que não estavam de acordo com a posição de Clemente e de Theodore. Como conseqüência, Theodore aparentemente os atacou e registrou sua ação junto a Clemente. Na carta encontrada pelo professor Smith, Clemente responde a seu discípulo da seguinte forma:

Você fez bem em silenciar os indescritíveis ensinamentos dos carpocra­cianos. Pois estes são as "estrelas errantes" da profecia, que se desviam da estrada estreita dos mandamentos para um abismo sem fronteiras de pecados carnais. Pois, orgulhando-se de seu conhecimento, como eles dizem, "das profundas [coisas] de Satã", eles não sabem que estão se jogando no "baixo mundo da escuridão" da falsidade, e, vangloriando-se de serem livres, eles se tornaram escravos de desejos servis. Tais [homens] devem ser combatidos de todas as maneiras e completamente. Pois, mesmo que eles digam alguma verdade, quem ama a verdade não deve, mesmo assim, concordar com eles. Pois nem todas as verdadeiras [coisas] são a verdade, nem deveria aquela verdade que [meramente] parece verdadeira segundo opiniões humanas ser preferida à verdade absoluta, aquela da fé.

Trata-se de uma afirmação extraordinária para um padre. De fato, Clemente está dizendo nada menos que, "se seu oponente estiver dizendo a verdade, você deve negá-la e mentir para refutá-lo". Mas isto não é tudo. Na passagem que se segue, a carta de Clemente continua discutindo o Evangelho de Marcos e seu "mau uso" pelos carpocra­cianos:

[Quanto a] Marcos, então, durante a estada de Pedro em Roma, ele escreveu [uma narrativa sobre] os feitos do Senhor, sem contudo declarar todos, nem ainda insinuar os secretos, mas selecionando aqueles que ele pensou mais úteis para aumentar a fé dos que estavam sendo instruídos. Mas quando Pedro morreu como um mártir, Marcos veio a Alexandria, trazendo suas notas e aquelas de Pedro, das quais ele transferiu para o seu livro anterior as coisas adequadas ao que quer que leve a progressos na direção do conhecimento [gnose]. [Então] ele compôs para uso um Evangelho mais espiritual que aqueles que estavam sendo aperfeiçoados. Entretanto, ele não divulgou as coisas que não deviam ser pronunciadas, nem escreveu os ensinamentos hierophanticos do Senhor, mas às histórias já escritas ele adicionou outras e, além disso, trouxe alguns dizeres dos quais ele sabia que a interpretação guiaria os ouvintes até os mais recônditos santuários da verdade oculta pelos sete [véus]. Então, em suma, ele pré-arranjou assuntos, nem de má vontade nem de forma incauta, em minha opinião, e, ao morrer, ele deixou sua composição na igreja de Alexandria, onde ela é ainda mais cautelosamente guardada, sendo lida somente por aqueles iniciados nos grandes mistérios.
Mas como os loucos demônios estão sempre planejando destruição para a raça humana, Carpocrates, instruído por eles e utilizando-se de artes malévolas, escravizou alguns presbíteros da igreja de Alexandria de tal modo que conseguiu uma cópia do Evangelho secreto, que ele interpretou segundo sua doutrina blasfema e carnal e, além disso, poluiu, misturando palavras límpidas e sagradas com vergonhosas mentiras.

Assim, Clemente reconheceu livremente que existe um autêntico evangelho secreto de Marcos. E instruiu Theodore a negá-lo:

Àqueles [os carpocracianos], desta forma, como eu disse antes, não se deve dar trégua jamais. Quando eles lançam suas falsificações, não devemos conceder que o Evangelho secreto é o de Marcos, mas devemos sempre negá-lo sob juramento. Pois "nem todas as verdadeiras [coisas] devem ser ditas a todos os homens".

O que era este "evangelho secreto" que Clemente ordenou a seu discípulo repudiar e que os carpocracianos estavam interpretando de forma má? Clemente responde a pergunta ao incluir a transcrição do texto, palavra por palavra, em sua carta:

Para você, eu não hesitarei em responder [às perguntas] que perguntou, refutando todas as falsificações pelas verdadeiras palavras do Evangelho. Por exemplo, depois de "E eles seguiram na estrada que ia para Jerusalém" e o que se segue, até "Depois de três dias ele subirá", [o Evangelho secreto] traz o seguinte [material] palavra por palavra:
"E eles chegam a Betânia, e uma mulher, cujo irmão havia morrido, estava lá. E, vindo, ela se prostrou ante Jesus e lhe disse: filho de Davi, tenha piedade de mim. Mas os discípulos a empurraram. E Jesus, ficando com raiva, foi com ela até o jardim onde estava a tumba e, imediatamente, um grande grito foi ouvido da tumba. Chegando perto, Jesus afastou a pedra da porta da tumba. E imediatamente, indo na direção de onde estava o jovem, ele estendeu sua mão e o levantou, segurando-o pela mão. Mas o jovem, olhando para ele, o amou e começou a implorar que pudesse segui-lo. E saindo da tumba eles foram para a casa do jovem, pois ele era rico. E depois de seis dias, Jesus lhe disse o que fazer e à noite o jovem foi ter com ele, usando uma roupa de linho sobre [seu corpo] nu. E ele permaneceu com ele aquela noite, pois Jesus ensinou-lhe o mistério do reino de Deus. E então, se levantando, ele retornou ao outro lado do Jordão."

Este episódio não aparece em nenhuma versão do Evangelho de Marcos. Entretanto, é bastante familiar em suas linhas gerais. Existe, é claro, a cura de Lázaro, descrita no quarto Evangelho, atribuído a João. Na versão citada, contudo, existem algumas variações significativas. Em primeiro lugar, existe um "grande grito" na tumba antes que Jesus afaste a rocha ou instrua seu ocupante a levantar-se. Isto sugere que o ocupante não estava morto, negando assim qualquer elemento miraculoso. Em segundo lugar, no episódio de Lázaro parece haver algo mais do que as narrativas aceitas nos levam a acreditar. Certamente, a passagem citada atesta alguma relação especial entre o homem na tumba e o homem que o "ressuscita". Alguns, talvez sejam tentados a ver uma insinuação de homossexualidade. É possível que os carpocracianos, uma seita que aspirava à transcendência dos sentidos por meio da saciedade, discernisse precisamente tal insinuação. Mas, como argumenta o professor Smith, é na realidade muito mais provável que todo o episódio se refira a uma iniciação, uma morte e renascimento rituais e simbólicos, de um tipo muito comum no Oriente Médio da época.

Em todo caso, o aspecto central é que o episódio, e a passagem citada acima, não aparece em nenhuma versão moderna ou aceita de Marcos. Realmente, as únicas referências a Lázaro, ou a um personagem chamado Lázaro, no Novo Testamento estão no Evangelho atribuído a João. Fica assim evidente que o conselho de Clemente foi aceito, não somente por Theodore, mas também por autoridades posteriores. O incidente com Lázaro foi completamente excluído do Evangelho de Marcos.

Se o Evangelho de Marcos foi tão dramaticamente expurgado, ele foi também carregado com adições espúrias. Em sua versão original ele termina com a crucificação, o enterro e a tumba vazia. Não existe a cena da ressurreição, ou a reunião com os discípulos. Algumas Bíblias modernas contêm um final mais convencional para o Evangelho de Marcos, incluindo a ressurreição. Mas praticamente todos os estudiosos da Bíblia concordam em que este final expandido é uma adição posterior, datada do final do século II e anexada ao documento original.

Dessa forma, não podemos aceitar os Evangelhos como uma autoridade definitiva e inexpugnável, mas tampouco podemos descartá-los. É certo que eles não foram totalmente fabricados e fornecem algumas das poucas pistas disponíveis sobre o que realmente ocorreu na Terra Santa dois mil anos atrás.

"Ressurreição" de Lázaro: Deliberadamente excluída do Evangelho de Marcos.