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quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O Santo Graal e a Linhagem Sagrada

II
OS CÁTAROS E A GRANDE HERESIA

Comecemos  num ponto que já nos era razoavelmente familiar: a heresia cátara, ou albigense, e a Cruzada provocada por ela no século XIII.  Os cátaros figuravam de alguma maneira no mistério que circundava Saunière e Rennes-le-Château. Hereges medievais haviam sido numerosos na cidade e seus arredores, e sofreram brutalmente durante a Cruzada Albigense. De fato, toda a história da região é imersa em sangue cátaro, e os resíduos desse sangue persistem, com muita amargura, até os dias de hoje. Muitos camponeses atuais da região, sem os inquisidores para irromper sobre eles, proclamam abertamente sua simpatia pelos cátaros. Existiram até mesmo uma igreja cátara e um papa cátaro que, até sua morte, em 1978, viveu na cidade de Arques.
Saunière deve ter-se familiarizado com as inúmeras lendas ligadas aos cátaros. Deve ter ouvido os rumores que ligavam essas lendas ao fabuloso objeto, o cálice sagrado. E se Richard Wagner, em busca de alguma coisa relacionada com o cálice, realmente visitou Rennes-le­-Château, Saunière não pode ter ignorado o fato.
Outra razão existe, e mais provocante, para relacionar os cátaros com o mistério de Rennes-Ie-Château. Em um dos pergaminhos encontrados por Saunière, o texto é respingado com uma porção de letras pequenas exatamente oito, deliberadamente diferentes de todas as outras. Três dessas letras estão no topo e cinco no pé da página. Lidas em seqüência, formam duas palavras, REX MUNDI, um termo indiscutivelmente cátaro, logo reconhecível como tal por qualquer pessoa familiarizada com o pensamento dessa seita.
É  razoável, portanto, iniciar nossa história pelos cátaros. Assim, comecemos a conhecer em detalhes suas crenças e tradições, sua história e seu meio. O estudo abriu novas dimensões do mistério e gerou perguntas assustadoras.

A Cruzada Albigense

Em 1209, um exército de cerca de 30 mil homens, incluindo cavaleiros e infantes, desceu do norte da Europa para o Languedoc, as montanhas a nordeste dos Pirineus, onde fica hoje o sul da França. Na guerra que se seguiu, todo o território foi pilhado, as colheitas destruídas, as cidades e vilarejos arrasados. A população tomou a espada. Este extermínio ocorreu numa extensão tão vasta que pode bem ter constituído o primeiro caso de genocídio na história da Europa moderna. Só na cidade de Beziers, por exemplo, pelo menos 15 mil homens, mulheres e crianças foram mortos, muitos no próprio santuário da igreja. Quando um oficial perguntou ao representante do papa como ele conseguiria distinguir hereges e crentes verdadeiros, a resposta foi: "Mate-os todos. Deus reconhecerá os seus." Esta citação, amplamente narrada, pode ser apócrifa. Mesmo assim, caracteriza o fanatismo, o zelo e o prazer sanguinário com que as atrocidades foram perpetradas. O próprio representante papal, ao escrever a Inocêncio III em Roma, anunciou orgulhosamente que "nem idade, nem sexo, nem posição foram poupados".
Essa guerra, que durou cerca de quarenta anos, é hoje conhecida como Cruzada Albigense: Foi uma Cruzada no sentido exato do termo, enviada pelo próprio papa. Seus participantes usavam uma cruz em suas túnicas, como os cruzados da Palestina. E as recompensas eram as mesmas: absolvição de todos os pecados, remissão de penas, um lugar seguro no céu e, naturalmente, os produtos dos saques. Nessa Cruzada, além disso, não era necessário nem mesmo atravessar o mar e, de acordo com a lei feudal, era-se obrigado a lutar por no máximo quarenta dias. Assumia-se, é claro, que não havia interesse em saquear.
Nas palavras da Igreja, o Languedoc estava "infectado" pela heresia albigense, "a lepra louca do sul". Embora os adeptos dessa heresia fossem essencialmente pacíficos, eles constituíam uma ameaça grave à autoridade romana, a mais grave que Roma experimentaria até três séculos depois, quando os ensinamentos de Martinho Lutero iniciaram a Reforma. Por volta de 1200, havia uma perspectiva real de que o catolicismo romano, como forma dominante de cristianismo, fosse substituído, no Languedoc, pela heresia. Ela estava se irradiando para outras partes da Europa, especialmente os centros urbanos da Alemanha, Flandres e Champagne, o que era ainda mais ameaçador aos olhos da Igreja.
Os hereges eram conhecidos por vários nomes. Em 1165 eles haviam sido condenados por um conselho eclesiástico no Languedoc, na cidade de Albi. Por esta razão, ou talvez porque Albi continuasse a ser um de seus centros, eles eram chamados com freqüência de albigenses; em outras ocasiões eram cátaros; na Itália, patarines. Não raro, eram também estigmatizados com nomes de heresias anteriores, como arianos, marcionistas e maniqueístas.
Albigense e cátaro eram nomes genéricos. Não se referiam a uma única igreja coerente, como aquela de Roma, com teologia e doutrina fixas, codificadas, definitivas. Em geral, os cátaros acreditavam numa doutrina de reencarnação e no reconhecimento de um princípio feminino de religião. De fato, os pregadores e professores das congregações cátaras, conhecidos como parfaits ["perfeitos"], eram de ambos os sexos. Ao mesmo tempo, rejeitavam a Igreja Católica e negavam a validade das hierarquias clericais, ou de intercessores oficiais e ordenados entre Deus e o Homem. No centro desta posição, reside um princípio importante: o repúdio à fé, pelo menos na forma em que a Igreja a prega. No lugar da fé aceita em segunda mão, os cátaros insistiam no conhecimento direto e pessoal, numa experiência religiosa ou mística apreendida em primeira mão. Esta experiência chamava-se gnosis, termo grego para "conhecimento", e os cátaros a privilegiavam sobre todos os credos e dogmas. A ênfase no contato pessoal direto com Deus tornava supérfluos padres, bispos e outras autoridades eclesiásticas.
Para os cátaros, homens eram as espadas com que os espíritos lutavam, sem que ninguém visse suas mãos. Toda a Criação estava imersa numa guerra perpétua entre dois princípios irreconciliáveis, luz e escuridão, espírito e matéria, bom e mau. O catolicismo posicionava um Deus supremo cujo adversário, o demônio, era definitivamente inferior. Os cátaros proclamavam a existência não de um Deus, mas de dois, com posições mais ou menos comparáveis. Um deles  "deus um"  era um ser, ou princípio, de puro espírito, limpo das manchas da carne. Era o deus do amor, considerado incompatível com o poder. Ora, a Criação material era uma manifestação de poder. Assim, a Criação material , o mundo era intrinsecamente mau. Toda matéria era intrinsecamente má. O Universo, em síntese, era a obra de um deus usurpador, o deus do mal  ou, como os cátaros o chamavam, REX MUNDI, "deus do mundo".
Aos olhos da Igreja Romana, os cátaros cometiam sérias heresias ao considerar a Criação, em nome da qual Jesus supostamente havia morrido, como intrinsecamente má, e ao considerar que Deus, cuja palavra havia criado o mundo no início, era um usurpador. Sua mais grave heresia era, contudo, a atitude em relação ao próprio Jesus. Se a matéria era intrinsecamente má, Jesus não poderia ter partilhado dela, encarnado, e ainda ser o filho de Deus. Para alguns cátaros, ele era totalmente incorpóreo, um fantasma, uma entidade de puro espírito que, é claro, não poderia ter sido crucificado. A maioria dos cátaros, no entanto, parece tê-lo considerado um profeta como outros, um ser mortal que, em nome do princípio do amor, morreu na cruz. Em suma, não havia nada de místico, de sobrenatural, de divino, envolvendo a crucificação. Muitos pareciam duvidar que ela tivesse mesmo ocorrido.
De qualquer modo, todos os cátaros repudiavam veementemente a significância tanto da crucificação quanto da cruz, ou por considerarem essas doutrinas irrelevantes, ou porque Roma as exaltava tão fervorosamente, ou porque as circunstâncias brutais da morte do profeta não merecessem adoração. E a cruz - pelo menos em associação com o calvário e a crucificação - era considerada um emblema de Rex Mundi, senhor do mundo material, a própria antítese do verdadeiro princípio redentor. Jesus, se era mortal, tinha sido um profeta do amor. E AMOR, quando invertido ou pervertido, ou ainda deturpado em poder, tornava-se ROMA, cuja opulência e luxo figuravam para os cátaros como a manifestação palpável, na Terra, da soberania de Rex Mundi. Como conseqüência, eles não só recusavam a adoração da cruz como também negavam os sacramentos, inclusive o batismo e a comunhão.
Por mais intricada que fosse sua teologia, os cátaros, na prática, eram um povo eminentemente realista. Por exemplo, condenavam a procriação - uma vez que a propagação da carne não estava a serviço do princípio do amor, mas de Rex Mundi - mas não eram ingênuos a ponto de advogar a abolição da sexualidade. Havia, é verdade, um sacramento cátaro, ou algo equivalente, chamado Consolamentum, que compelia à castidade. Com exceção dos parfaits, contudo, que eram normalmente homens e mulheres sem família, o Consolamentum não era administrado até que se estivesse à beira da morte, e não é muito difícil ser casto quando se está morrendo. A congregação, de modo geral, tolerava a sexualidade, se não a sancionava explicitamente. Como se pode condenar a procriação enquanto se desculpa a sexualidade? Algumas evidências sugerem que os cátaros utilizavam controle de natalidade e aborto. Nós conhecemos a posição atual de Roma sobre estes assuntos. Não é difícil imaginar com que energia e zelo vingativo esta posição se manifestava na Idade Média.
Em geral, os cátaros pareciam levar uma vida de extrema devoção e simplicidade. Como deploravam igrejas, usualmente conduziam seus rituais e serviços ao ar livre ou em algum edifício disponível, um celeiro, uma casa, o salão municipal. Também praticavam o que hoje chamamos meditação. Eram estritamente vegetarianos, embora se permitissem comer peixe. Quando viajavam pelo interior, os parfaits iam sempre aos pares, o que dava crédito aos rumores de sodomia lançados pelos seus inimigos.


Cátaros e a repressão da igreja












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